Enquanto um procura a ordem, o segundo busca o caos. Um cerra-se no seu próprio mundo, busca a compreensão de sua existência com espelho invertido do seu modelo idealizado. O outro, mira o externo, o aberto e o universo; passionalmente celebra a existência por si própria, como parte pulsante dela.
Racionalidade e Emotividade.
Incompatibilidade trajetual.
Um, desmantela a ordem para organizar; o outro, determina para libertar.
Ambos caminham firmes, eles fingem a não-existência alheia, como aceitação de si mesmos. Não se comunicam, muito menos coexistem no mesmo encerramento físico. Alimentam a incompatibilidade dos seus gênios.
Picasso e Matisse.
O artista espanhol quebra os paradigmas para estabelecer outros tão normativos quanto os que foram contestados. Já o artista francês aparenta a aceitação, não alardeia as diferenças, as subverte emotivamente.
São “Michelangelos”, linhagem clara.
Pablo Picasso. ‘Guernica’, 1937.
Picasso herdou a habilidade do desenho e a sua pintura possui a inquietação camuflada de Buonarroti. A “Sistina”
[1] de Picasso está localizada na dor racional de “Guernica”[2]. Se a morte lhe é incabível em sua obra monocromática, também o é para Adão que olha para seu criador indignado pela não-compreensão da vida e das suas agruras, estampado no teto de Roma. As “mulheres chorando”[3] do pintor moderno contêm o desejo incompreensível que esse possui por aqueles seres frágeis, do mesmo modo que os “escravos”[4] denotam a força de um sentimento indomável, intrínseco ao pintor italiano, que supera a tesa musculatura de sua obra. O etéreo lhes foge à concepção. Disfarçam suas impossibilidades e limitações perturbadoras na grandiosidade de suas obras[5].Pablo Picasso. ‘Mulher Chorando’(Femme en Pleurs), 1937.
Michelangelo Buonarroti.
‘Escravo Morrendo’, 1513-16.
Em contrapartida, Matisse se aproxima de outro Michelangelo. Di Merisi. Vulgo Caravaggio. Ele e Matisse partilham de uma dimensão que lhes é comum, porém distinta dos artistas anteriores, a expressão do pulsar sentimental. Seus personagens são libertos do receio do olhar alheio e, consequentemente, sem censuras limitadoras de sua existência. Tornam-se reais. Suas emoções estão à flor da pele com as cores que lhes representam. Se a “Virgem”[6] se acinzenta pela vida que lhe esvai na obra do pintor italiano; as “banhistas”[7] de Matisse se inflam da condição oposta, viver intensamente, pela intensidade das cores que preenchem a tez de seus corpos. A condição de vida das personagens e de seus feitores não lhes restringe, ao contrário, amplia os limites de sua existência. Expandem-se escancaradamente provocativos que incomodam aos enclausurados.
Contudo, todos os quatro são antagonicamente semelhantes.
Todos eles, gênios. Não, românticos e sim, hábeis.
Hábeis em uma infinidade de ações, de verbos.
Fazem, acreditam, observam, cultivam, associam, ousam, acertam, erram, aprendem, apreendem. Mas há uma habilidade que possuem em especial. A habilidade da coragem inerente às pessoas que desafiam Cloto, Láquesis e Átropos[8]. A eles é inerente a segurança do conhecimento prévio. De que o que está por vir a eles pertencem e por eles é feito.
Henry Matisse. ‘Luxúria, Calma e Volúpia’, 1904-05.
[2] Pablo Picasso. ‘Guernica’, 1937, óleo s. tela, 350 x 782 cm. Centro Nacional de Arte Rainha Sofia, Madrid.
[3] Pablo Picasso. ‘Mulher Chorando’(Femme en Pleurs), 1937, óleo s. tela, 84,7 x 73,9 cm. Tate Gallery, London.
[4] Michelangelo Buonarroti. ‘Escravo Morrendo’, 1513-16, mármore, alt. 229 cm. Museé du Louvre, Paris.
[5] Grandiosidade da sua habilidade artística e também das dimensões físicas de suas obras.
[6] Caravaggio. Michelangelo Di Merisi. ‘A Morte da Virgem’, c.1601-1603, Óleo s. Tela, 369 X 245 cm. Museé du Louvre, Paris.
[7] Henry Matisse. ‘Luxúria, Calma e Volúpia’, 1904-05, Óleo s. Tela, 98.5 X 118 cm. Museé National D'art Moderne, Centre Georges Pompidou, Paris.
[8] Cloto, Láquesis e Átropos são os nomes das Moiras, filhas de Nix (a Noite), são responsáveis pelo destino dos homens. Tecem, enrolam e cortam o fio de ouro que determina a vida de cada mortal. (Mitologia Grega)
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